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AULAS ESPECIAIS PORTUGUÊS


AS OBRAS DA UNICAMP

O MARINHEIRO
I. O ESPAÇO E O TEMPO POÉTICOS DE 1904 – Pessoa recebe o “Queen Victoria Memorial
PESSOA Prize”, pela sua prova de admissão à
Universidade do Cabo.
1887 – Data seposta do nascimento do heterônimo – Leituras em Inglês: Milton, Byron, Shelley,
RICARDO REIS, no Porto. Um horóscopo Keets, Tennyson, Carlile e Edgar Allan Poe.
feito pelo poeta situa-o em 19 de setembro, às 1905 – Fernando Pessoa regressa definitivamente a
16h e 5m da tarde, Lisboa, com intenção de se inscrever no Curso
1888 – Nasce FERNANDO ANTÓNIO NOGUEIRA Superior de Letras. Lê Shakespeare,
PESSOA, em l3 de junho, às 15h20m. Wordsworth, os filósofos gregos e alemães.
1889 – Data suposta do nascimento do heterônimo Toma contacto com a poesia francesa,
ALBERTO CAEIRO, em Liaboa, às 13h45m, especialmente Baudelaire. Lê os poetas
em l6 de abril, segundo horóscopo de Pessoa. portugueses: CESÁRIO VERDE e CAMILO
1891 – Data suposta do nascimento do heterônimo PESSANHA. Continua a escrever poesia e
ÁLVARO DE CAMPOS, em Tavira, às prosa em língua inglesa.
13h30m, do dia 15 de outubro, segundo 1907 – Fernando Pessoa abandona o Curso Superior
horóscopo de Pessoa. de Letras e monta uma tipografia: a Empresa
1893 – Fernando Pessoa perde o pai. Ibis- Tipografia Editora – Oficinas a Vapor,
1894 – Morre o irmão Jorge. que mal chega a funcionar.
– Fernando Pessoa cria o primeiro heterônimo 1908 – Começa a trabalhar como “correspondente
infantil (“um certo CHEVALIER DE PAS dos estrangeiro” em casas comerciais, profissão
meus seis anos, por quem escrevia cartas dele que exerceu até a morte. Pessoa escolhe uma
a mim mesmo”). vida discreta, mas livre, sem obrigações fixas,
1895 – Fernando Pestoa escreve o seu primeiro nem horários. O ser poeta e escritor não
poema, a quadra “À Minha Querida Mamã”. constitui profissão, mas vocação.
– A mãe do poeta casa-se por procuração com 1901 – Revolução Republicana em Portugal. Teófilo
João Miguel Rosa, cônsul português em Braga assume a presidência do Governo
Durban, na Africa do Sul. Provisório da República.
1896 – Fernando Pessoa parte com a família para 1912 – Fernando Pessoa inicia sua colaboração na
Durban, deixando em Portugal a avó paterna, revista A ÁGUIA. Inicia correspondência com
louca e internada num asilo. Mário de Sá-Carneiro, que, de Paris, manda a
– Começa seus estudos em uma escola católica Pessoa notícias do Cubismo e do Futurismo.
irlandesa, o convento de West Street, em Desenha-se na mente do poeta o primeiro perfil
Durban, onde aprende Inglês e faz a primeira de RICARDO REIS.
comunhão. Sua leitura predileta: — “As 1913 – Surge o Paulismo, movimento poético que
Aventuras do Sr. Pickwick”, de Charles Pessoa considera um avanço em relação ao
Dickens. Simbolismo e ao Neo-Simbolismo.
1899 – Matricula-se na High School. – Pessoa escreve, em Inglês, o poema
– Aparece um nova heterônimo: ALEXANDRE “Epithalamium” e, em Português, o drama
SEARCH, em nome do qual Pessoa escreve estático “O MARINHEIRO”. Vai elaborando o
cartas a si mesmo. projeto de vários livros.
1901 – Começa a escrever poemas em Inglês. 1974 – Eclode a 1.a Grande Guerra.
– Viagem de férias a Lisboa, com a mãe e o – Pessoa publica “Paúis”, sob o título de
padrasto, que transportam na viagem o corpo “Impressões do Crepúsculo”. Inicia-se a
de uma meia-irmã morta. ruptura com a corrente “saudosista” de
1902 – Escreve em Durban o poema “Quando Ela Teixeira dos Pascoais e Afonso Lopes Vieira.
Pessa” presumivelmente inspirado na morte da – Aparecimento do heterônimo ALBERTO
irmã. CAEIRO, com os poemas de “O
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GUARDADOR DE REBANHOS”. Surgem às geometrias não-euclidianas e às teorias de


também os dois discípulos do “mestre” Caeiro: Einstein sobre a Relatividade.
— RICARDO REIS e ÁLVARO DE CAMPOS. 1925 – Morte da mãe do poeta.
– Pessoa compõe a “ODE TRIUNFAL”, – Fim da revista “Athena”.
encaminhando-se para o SENSACIONISMO e 1929 – Novas cartas de Pessoa a Ofélia, manifestando
o FUTURISMO, sob o heterônimo de Alvaro a incompatibilidade entre o casamento e seus
de Campos. Compõe ainda “CHUVA projetos literários.
OBLÍQUA” (poesia ortonímica), delineando o 1930 – Pessoa é implicado na aventura do mágico
INTERSECCIONISMO. inglês Aleister Crowley, desaparecido
1915 – Surge a REVISTA ORPHEU, marco inicial do misteriosamente durante uma visita a Portugal.
Modernismo Português. O 1.o número de – Período fecundo de criação poética: poemas
Orpheu, dirigido por Luís de Montalvor e de Caeiro, Reis, Campos e Pessoa, “ele
Ronald de Carvalho, publica os poemas “Ode mesmo”.
Triunfal” e “Opiáreo” (Álvaro de Campos) e “O 1933 – Pessoa sofre uma crise profunda de
Marinheiro” (F. Pessoa). No 2.o número de neurastenia. A produção poética continua
Orpheu, saem “Chuva Oblíqua” e “Ode intensa, sobretudo a de Fernando Pessoa
Marítima”. “ortônimo “
– Fernando Pessoa inicia-se no esoterismo, 1934 – Publica “MENSAGEM”, poemas de cunho
traduzindo um Tratado de Teosofia. místico-nacionalista, única obra em Português
1916 – Sá-Carneiro suicida-se. “Morre jovem o que os publicada em vida. Concorre, com este livro, a
deuses amam”; dirá mais tarde Pessoa do um prêmio literário. Obtém um prêmio menor.
amigo morto, e cuja morte fora por ele 1935 – Morre Fernando Pessoa, em 30 de novembro,
“pressentida”; num surto de “mediunidade” no Hospital São Luís, em Lisboa, onde tinha
que acometeu o poeta, nessa época envolvido sido internado dois dias antes, com “cólica
com a astrologia, com o cabalismo, com o hepática”.
esoterismo. Essa vertente ocultista e mística
terá outros desdobramentos na vida e na obra II. A POESIA E A PROSA DE FERNANDO
de Pessoa. PESSOA
1917 – Surge a revista “Portugal Futurista”, dirigida
por Almada Negreiros e Santa-Rita Pintor, com 1. OBRAS POÉTICAS
colaborações de Fernando Pessoa, que
também escreve para as revistas “Exílio” e a) Mensagem (1934). Único livro, em língua
“Centauro”. portuguesa, publicado em vida. Poemas de sentido
1918 – Pessoa publica “Antinous” e “35Sonnets”, em místico-ocultista e nacionalista. Desdobra-se em:
Inglês. – À Memória do Presidente-Rei Sidônio Pais.
– Atentado a Sidônio Pais, o “Presidente-Rei”, – O Quinto Império.
a quem Pessoa dedicará um poema, e em que – Cansioneiro.
via uma encarnação momentânea de D. b) Poemas Dramáticos, incluindo o “drama
Sebastião.
estático” O Marinheiro.
1919 – O heterônimo Ricardo Reis exila-se no Brasil,
c) Quadras ao Gosto Popular
pois não aceita a República.
– Pessoa escreve os “Poemas Inconjuntos”, d) Poemas Ingleses – Poemas Franceses – Poemas
assinados por Alberto Caeiro (apesar da morte Traduzidos.
presumida deste, em 1915). e) Poemas de ALBERTO CAEIRO.
1920 – Pessoa passa a morar com sua mãe, que f) Odes de RICARDO REIS.
regressara, viúva, da África do Sul. g) Poesias de ÁLVARO DE CAMPOS.
– Escreve cartas de amor a Ofélia, única ligação h) Poesias de FERNANDO PESSOA.
amorosa do poeta que se conhece, distante e
fugaz. 2. OBRAS EM PROSA
1921 – Publicação dos “English Poems” 1, II e III.
1922 – Publicação, na revista “Contemporânea”, da a) O Livro do Desassossego, por BERNARDO
novela “O Banqueiro Anarquista”. SOARES.
1924 – Na revista “Athena”, Álvaro de Campos b) Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação.
polemiza com Fernando Pessoa, “ele-mesmo”, c) Páginas de Estética e de Teoria e Crítica
no ensaio “O que é a Metafísica?”, Literária.
—Na mesma revista, publica os “Apontamentos a d) Textos Filosóficos.
uma Estética não-Aristotélica”, que compara e) Sobre Portugal – Introdução ao Problema
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Nacional. contradições do outro, como se fossem diversos poetas,


f) Da República. todos eles com uma poderosa visão crítica de sua
g) Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. própria obra e da dos outros.
h) Cartas de Amor. Nesse labirinto de linguagens e de cosmovisões,
i) Textos de Crítica e Intervenção.
ALBERTO CAEIRO é o mestre bucólico, o camponês
III. TUDO O QUE EM MIM SENTE ‘STÁ sábio; RICARDO REIS é o neoclássico, racionalista,
PENSANDO” semi-pagão; ÁLVARO DE CAMPOS é o futurista,
neurótico e angustiado e FERNANDO PESSOA, “ele
O centenário do nascimento de Fernando Pessoa mesmo”, o “ortônimo”, parece ser o heterônimo de
ratifica sua posição de maior poeta da língua portuguesa, algum outro ser/poeta, instalado entre um heterônimo e
ao lado de Camões, e da mais universal e mais intrigante outro, nos intervalos, simples “ficção do interlúdio”, Há
obra poática moderna em nossa língua. ainda vários outros heterônimos, nos desenvolvidos: –
A modernidade de Fernando Pessoa principia pela BERNARDO SOARES, ALEXANDRE SEARCH,
densa posição metalinguística, pela consciência crítica e ANTÔNIO MORA, G. PACHECO, VICENTE
autocrítica pela negação do sentimento puro como GUEDES, até o CHEVALIER DE PAS, de quem o
conteúdo poético (“Tudo o que em mim sente ‘stá menino Fernando Pessoa recebia cartas que ele mesmo
pensando”). A essência de sua linguagem nova reside na escrevia, aos seis anos de idade.
constante conversão do sentimento em pensamento, na
Essa pluralidade de seres/poetas aparece
constante alquimia do sentido em outra coisa que o excede.
variadamente expressa nas reflexões de cada heterônimo
Essa “inteligência sensível” possibilitou a realização
de uma poética densamente experimental que, partindo das acerca de sua identidade poética: –
formas líricas tradicionais, ultrapassa-as de forma criativa,
evoluindo através de várias etapas: – o saudosismo “Serei eu, porque nada é impossível,
esotérico, o nacionalismo místico, o paulismo, o futurismo, Vários trazidos de outros mundos, e
o Interseccionismo e o sensaceonismo. No mesmo ponto espacial sensível
Autodefinindo-se como um “poeta dramático”, Pessoa Que sou eu, sendo eu por ‘star aqui?”
realiza uma poesia multipessoal e pIurissubjetiva, entre a (Fernando Pessoa, “ele mesmo”)
poesia pessoal e subjetiva em crise, e a poesia impessoal e
objetiva das vanguardas que derivam de Mallarmé. Essa foi “Ou somos nós todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
a sua verdadeira revolução poética. Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém fora de mim?”
IV. O SUJEITO PLURAL – O EU PROFUNDO E (ÁIv de Campos)
OS OUTROS EUS, OS HETERÔNIMOS.
“Pera que me movo com os outros
Fernando Pessoa desdobra-se em vários outros Em um mundo em que nos entendemos e onde
poetas-seres, ou linguagens, ou “máscaras”, ou os [coincidimos,
HETERÔNIMOS. Não se trata do use clássico da Se por acaso esse mundo é o erro e eu é que estou certo ?“
pseudônimo, processe antigo usado para cobrir ou não o (Alberto Caeiro).
anonimato, O que marca os heterônimos de Pessoa, e dá
dimensão à sua obra, não é somente a diversidade de “.......................................... a vida
assinaturas em que se manifesta, mas, rigorosamente, a É múltipla e todos os dias são diferentes dos outros
diversidade dos sujeitos poéticos, a pluralidade d própria E só sendo múltiplos como eles
poesia. ‘Staremos na verdade e sós.”
Numa dessas “máscaras”, Fernando Pessoa, “ele (Ricardo Reis)
mesmo” constrói a poesia ORTONÍMICA, assinada
pelo próprio poeta, que se coloca no mesmo plano de V. “O POETA É UM FINGIDOR”
suas “máscaras”, como mais um heterônimo.
As outras “máscaras” ou HETERÔNIMOS O subjetivismo de Pessoa, “ele mesmo” , oposto ao
constituem, cada uma delas, uma atitude-experiência Objetivismo de Caeiro, nada tem a ver com o
assumida pelo próprio Pessoa, e dasembocam num jogo confessionalismo romântico, com a expressão direta das
infinito de linguagens/seres, dialogando entre si, sensações ou emoções vividas. O Poeta cria-se a si
correspondendo-se, e apontando, cada uma, as mesmo, como sujeito fictício de sensações fictícias,
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mesmo se elas são efetivamente sentidas como tais. É Mas reconheço, ao medir-me,
essa a poética do “fingimento”, do célebre poema Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
AUTOPSICOGRAFIA
Temos, todos que vivemos,
O poeta é um fingidor Uma vida que é vivida
Finge tão completamente E a outra vida que é pensada,
Que chega a fingir que é dor E a única que temos
A dor que deveras sente. É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
E os que lêem o que escreve
Na dor lida sentem bem, Que porém é verdadeira
Não as duas que ele teve E qual errada, ninguém
Mas só a que eles não têm. Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
E assim nas calhas de roda Que a vida que a gente tem
Gira, a entre ter a razão, É e que tem que pensar.
Esse comboio de corda
Que se chama coração. (de “Cancioneiro”)

Observe a complexidade das noções envolvidas no Ou ainda, como contraponto esclarecedor ao poems
poema: “Autopsicografia”, este outro:
Na primeira estrofe, a “dor” do poeta desliga-se de
seu “eu” pessoal, para encarnar no sujeito poético. E a Dizem que finjo ou minto
dor acaba por transcender ao poeta, passando a fazer Tudo que escrevo. Não
um só corpo com o poema. É evidente aqui, na dialética Eu simplesmente sinto
sinceridade-fingimento, a dupla perspectiva: Com a imaginação.
1) há a dor do poeta-escritor, que pode sentir a dor Não uso o coração.
enunciada;
2) há a dor “fingida” por sua “máscara “, a dor do Por isso escrevo em meio
sujeito-poético, que é a dor construída pala escritura. Do que não está ao pé,
Uma é a dor sentida, outra é a dor “fingida” pela Livre do meu enleio,
linguagem. Sério do que não é.
Na segunda estrofe esse jogo “sentir x fingir” Sentir? Sinta quem lê!
amplia-se quando decodificado pelo leitor, que não sente
nem uma nem outra dessas duas dores (a dor sentida e a Diz ainda o poeta: — “Mimo, mesmo querido afirmo
dor fingida), mas só a “dor lida”, que não é também a que minto. Meus discursos são sempre verdadeiros,
sua própria dor. portanto sempre falsos. Sou mentido pela linguagem.
Na terceira, estrofe o coração (sentimento) é um Mas em corpo, exilado da linguagem, algo dói, algo
brinquedo infantil (comboio de corda = trenzinho de sofre: Falo, e as palavras que digo são um som; sofro e
corda) a girar nos trilhos (= calhas de roda) da razão. sou eu.”
A escritura-leitura do poema é um ato de pura Ao acreditarmos em Álvaro de Campos, o
criação-comunicação de um objeto imaginário por e heterônimo mais incontido, essa explosão heteronímica
para um sujeito imaginário. aspirara ao universal, como esperança da unidade na
Observe a retomada constante da dialética “sentir x diversidade:
pensar”, nos poemas subscritos por Fernando Pessoa,
“ele mesmo”: “Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Tenho tanto sentimento Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao
Que é freqüente persuadir-me mesmo
De que sou sentimental, [tempo,
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Realizar em si toda a humanidade de todos os numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei
momentos, definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei
Num só momento difuso, profuso, completo e ter outro assim. Abri com um título, “O Guardador de
longínquo.” Rebanhos”. E o que se seguiu foi o aparecimento de
alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de
6. O NASCIMENTO DOS HETERÔNIMOS, Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase:
SEGUNDO FERNANDO PESSOA. aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação
imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram
Em carta dirigida a Adolfo Caseis Monteiro, em 13 esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei
de janeiro de 1935, Pessoa explica assim a gênese dos noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que
heterônimos: constituem a “Chuva Oblíqua”, de Fernando Pessoa.
“Desde criança tive a tendência para criar em meu lmediatamante e totalmente... Foi o regresso de
torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e Fernando Pessoa Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou,
conhecidos que nunca existiram. (Não ser, bem melhor, foi a reação de Fernando Pessoa contra a sua
entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que inexistência como Alberto Caeiro.
não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe
ser dogmáticos). Desde que me conheço como aquilo a descobrir – instintiva e subconscientemente – uns
que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo
figura, movimentos, caráter e história, várias figuras Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo,
irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as porque nessa altura já o via. E, de repente, em derivação
coisas daquilo a que chamamos, porventura oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um
abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem
dasde que me lembro de ser um eu, tem-me interrupção nem emenda, surgiu a “Ode Triunfal” de
acompanhado sempre, mudando um pouco a música com Álvaro de Campos – A Ode com esse nome e o homem
que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira com o nome que tem.
de encantar.
Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu (...) Parece que tudo se passou independentemente
primeiro heterônimo, ou, antes, o meu primeiro de mim. E parece que assim ainda se passa. Graduei as
conhecido inexistente – um certo Chevalier de Pas dos influências, conheci as amizades, ouvi dentro de mim as
meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim discussões e as divergências de critérios, em tudo isso
mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali
conquista aquela parte da minha afeição que confina houve. (...)
com a saudade. (...) Coisas que acontecem a todas as Mais uns apontamentos nessa matéria... Eu vejo
crianças? Sem dúvida – ou talvez. Mas a tal ponto as vivi diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as
que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que caras, os gestos de Caeiro, de Ricardo Reis e Álvaro de
é mister um esforço para me fazer saber que não foram Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo
ree/idades. (...) Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), tenho algures), no Porto, é médico e está presentemente
veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em
Esbocei algumas coisas em irregular (não no estilo 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu toda a sua vida no
Álvaro de Campos, mas num estilo de meia campo. Não teve profissão nem educação quase alguma.
regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de
contudo, uma penumbra mal-urdida, vago retrato da outubro de 1890 (às lh30 da tarde, diz-me o Ferreira
pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa
que eu soubesse, o Ricardo Reis). hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa, em
de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um inatividade. (...)
poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por
já não lembro como, em qualquer espécie de realidade. pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer
Levei uns dias para elaborar o poeta mas nada consegui. calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma
Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de março deliberação abstrata, que subitamente se concretiza
de 1914, acerquei- me de uma cômoda alta, e, tomando numa Ode. Campos, quando sinto um súbito impulso
um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo para escrever e não sei o quê. (...) Caeiro escrevia mal o
sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, português, Campos razoavelmente mas com lapsos como

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dizer “eu próprio” em vez de “eu mesmo”, e etc., Reis Symbolisme de Jean Moréas, que o publica, como
melhor do que eu, mas com um purismo que considero acontecerá depois com Marinetti, em Le Figaro. Neste
exagerado. (...) manifesto considera-se que o Simbolismo é o resultado
... A origem dos meus heterônimos é o fundo traço de da própria evolução da Literatura, admitindo-se que essa
histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente evolução é cíclica. O que o caracteriza, segundo Moréas,
histérico, se sou, mais propriamente, um híste- são as metáforas insólitas, o vocabulário novo
ro-neurastênico. (...) Seja como for, a origem mental de harmonicamente sustentado e aberto à valorização do
meus heterônimos está na minha tendência orgânica e
ritmo, etc. Algumas destas opções expressivas vão passar
constante para a despersonalização e para a simulação.
também pelo Modernismo. As figuras – símbolo,
Estes fenômenos – felizmente para mim e para os outros
metáfora, imagem – e o ritmo – em consonância com este
– mentalizaram-se em mim: quero dizer, não se
manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto corpo figural – desempenham na linguagem poética o
com os outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu que Moréas traduziu sob uma forma aparentemente
a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os enigmática: a poesia simbolista procura «vestir a ideia de
fenômenos histéricos rompem em ataques e coisas uma forma sensível». Se mudássemos de registo, tendo
parecidas – cada poema de Álvaro de Campos (o mais em vista uma poética da modernidade, diríamos que a
histéricamente histérico em mim) seria um alarme para relação entre o sensível e as ideias se transformava na
a vizinhança. Mas seu homem – e nos homens a histeria relação entre a idealização e a emocionalidade, entre o
assume principalmente aspectos mentais, assim tudo pensamento e a sensibilidade. Entre nós foi Ântero de
acaba em silêncio e poesia...” Quental e, depois, Pessoa quem melhor compreendeu
(“Textos de Crítica e de Intervenção”, Ática, Liaboa, essa mútua dependência, a qual faz com que a poesia não
1980, pp. 202,206) seja puro pensamento ou pura emoção. (...)

VII. FERNANDO PESSOA – “ELE MESMO” – O O movimento simbolista em Portugal começa a


ORTÔNIMO afirmar-se em 1889, com a publicação das revistas
Boémia Nova e Os Insubmissos. Entretanto, sobretudo no
Fernando Pessoa ortônimo, ou seja, ele-mesmo, campo da poesia, destacam-se nomes como os de
diverge muito de Caeiro e Reis porque não inculca uma
Eugénio de Castro e António Nobre ou, afirmando-se
norma de comportamento; nele há quase apenas a
mais tarde, os de Camilo Pessanha e Angelo de Lima. Há
expressão musical e sutil do frio, do tédio e dos anseios
da alm de estados quase inefáveis em que vislumbra por também a destacar uma feição simbolista na obra de Raul
instantes “uma coisa linda”, nostalgias dum bem perdido Brandão e na de António Patrício, com especial relevo
que não se sabe qual foi, oscilações quase imperceptíveis para a sua obra teatral. (...)
duma inteligência extremamente sensível, e até vivências
tão profundas que não vêm “à flor das frases e dos dias”, O Modernismo e a Vanguarda, no entanto,
mas se insinuam pela eufonia dos versos, pelas romperam, tal como o Simbolismo, com uma pesada
reticências, numa linguagem finíssima. carga que vinha do passado mais ou menos próximo,
Fernando Pessoa, ele-mesmo, retoma motivos e muito marcado por sequelas românticas ou naturalistas.
formas da lírica portuguesa, desde a Idade Média. É A influência do Simbolismo nos modernistas é
onde mais se projeta o “nacionalista místico”, o detectável. Alguns dos colaboradores das revistas
“sebastianista racional” que o poeta se dizia, Orpheu (1915), Exílio (1916) e Centauro (1916) estão
especialmente no poema esotérico Mensagem, réplica ainda muito ligados a uma sensibilidade expressiva
não-sistemática de Os Lusíadas, retomada dos grandes simbolista ou decadentista, até porque três ocasionais
descobrimentos e dos mitos históricos. colaboradores dessas revistas são Camilo Pessanha,
Sob o pretexto da exaltação patriótica – ainda que
Ângelo de Lima e, vindo da Boémia Nova, Alberto
lúcida e contida – Mensagem nos comunica uma
Osório de Castro. (...)
profunda reflexão sobre a existência humana, sua
aventura e seus desafios.
(...) Não deixa de ser curiosa a circunstância de no
Portugal Futurista (1917) a presença de colaboradores
VIII. O SIMBOLISMO E FERNANDO PESSOA
ainda ligados ao Simbolismo ter desaparecido, embora
nessa revista, que assume uma provocatória posição de
Em 1886, vinte anos depois de ter saído o Parnasse vanguarda, Pessoa tenha colaborado com as suas Ficções
Contemporain e vinte e três antes do Manifesto Futurista do Interlúdio, um conjunto de cinco poemas onde se
de Mannetti, apareceu sob a forma de manifesto Le
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chega ao pastiche da poesia simbolista, nomeadamente o que dá lugar a algumas ocasionais contradições quanto
com o uso das aliterações de Saudade Dada. Aí, «Em à importância do Simbolismo relativamente a urna nova
horas inda louras, lindas, Clorindas e Belindas brandas, / poesia (cf. por exemplo PIAI 190). Mas é importante
Brincam no tempo das berlindas, / As vindas vendo das notar também que Pessoa e a melhor poesia simbolista
varandas» é uma espécie de eco de um poema simbolista apontam para a afinnação de uma expressão verbal que
de Eugénio de Castro saído em Oaristos (1890) que em si mesma se objectiva através de uma complexidade
principia por este verso: «Na messe, que enlourece, que, sustentada por imagens, símbolos ou derivações
estremece a quermesse». Se há aqui uma intenção metafóricas, promove o equilíbrio entre a sensibilidade e
parodística, ela, no entanto, desaparece completamente a intelectualização.
no «drama estático» – como era também o teatro Um dos suportes desta objectivação está na
simbolista de Maeterlinck – intitulado O Marinheiro e heteronímia. Ora também aqui algo parece ter raízes em
publicado no primeiro número do Orpheu. Ao lado desta experiências simbolistas, porque a fragmentação ou
podemos considerar outras peças teatrais, que se diferimento da autoria são, efectivamente, uma
encontram incompletas, de Pessoa, as quais se experiência a que alguns autores ligados ao Simbolismo
enquadram na estética simbolista (cf. T. R. LOPES: se entregaram. Sob uma forma menos elaborada do que
1977, 515 e ss). (...) em Pessoa, eles cultivavam por vezes uma poética da
alteridade, a qual se pode desviar para o pastiche ou para
No entanto, a publicação de um alargado conjunto de a paródia, merecendo ambos dos simbolistas ou dos seus
textos de Pessoa que saíram postumamente e foram adversários literários um especial interesse. O outro
editados por Jacinto do Prado Coelho e Georg R. Lind (a autor pode ser Jerónimo Freyre ou Bartholomeu de
saber, Páginas Intimas e de Auto-Interpretação e Páginas Frágoa (isto é, Carlos de Mesquita), K. Maurício (um
de Estética e de Teoria e Crítica Literárias) veio precisar alter ego de Raul Brandão), Luís de Borja e R. Maria
melhor a natureza e o âmbito desta relação entre (isto é, R. Brandão, Júlio Brandão e Justino de
Simbolismo e Modernismo. Pessoa será bem explicito: Montalvão, possíveis autores de Os Nefelibatas, em
«Descendemos de três movimentos mais antigos – o 1891). Estephanio Rimbó (isto é, Sanches da Gama), etc.
simbolismo francês, o panteísmo transcendental O recurso ao alter ego ou à escrita parodística cria
português e a miscelânea de coisas contraditórias e sem formas diferidas de expressão que vão ao encontro de
sentido de que o futurismo, o cubismo e outras correntes uma poética em que a disfonia, a para textualidade ou a
afins são expressão ocasional, embora, para ser exacto, objectivação expressiva ganham uma certa relevância,
descendamos mais do espírito do que da letra desses embora, como é sabido, só com Pessoa ela tenha sido
movimentos» (PIAI 127). Em A Águia, a revista que foi levada até às suas últimas consequências. (...)
o órgão do Saudosismo – o tal «panteísmo transcendental
português» Pessoa publica em 1912 uma série de artigos Concluindo, reconhecer-se-á que o que o
com o título genérico «A Nova Poesia Portuguesa» e ai Modernismo atingiu no domínio da expressão artística
refere que a poesia simbolista está na linha de urna não pode ser explicado como uma consequência directa
evolução que conduziria a essa nova poesia portuguesa e imediata do Simbolismo. Mas, no momento em que
que seria pretensamente o Saudosismo e, com mais urna estética de procedência aristotélica assente no
propriedade (como notou Gaspar Simões na Vida e Obra princípio da mimese entrou em crise ao longo dos
de Fernando Pessoa. (1950, vol. I, 185), a do séculos XIX e XX, abriu-se a pouco e pouco o caminho
Modernismo ou, mesmo. a do próprio Pessoa. As para uma modernidade que também tem a sua tradição,
características fundamentais dessa poesia são o vago, a precisamente aquela tradição a que se referiu Octavio
subtileza e a complexidade. Destas três características Paz e que é ao Romantismo e ao Simbolismo que
porá em relevo as duas últimas. A subtileza é o remonta.
desdobramento e uma sensação em outras sensações que Fernando Guimarães.1
recompõem a primeira, intensificando-a: a complexidade
conduz a uma intelectualização de uma emoção e a 9. FERNANDO PESSOA E O SENSACIONISMO
emocionalização de uma ideia. Segundo Pessoa, o
Simbolismo é vago e subtil, «complexo, porém, não o é». O sensacionismo foi o último ismo criado por
(...) Pessoa, na cumplicidade, uma vez mais, do seu
compagnon de route, Sá-Carneiro, à semelhança do que
Importa notar que as achegas dos próprios aconteceu com outros ismos anteriores, tais como o
simbolistas quanto à elaboração de uma poética que Paulismo e o Interseccionismo. Pela sua teorização e
informasse a sua poesia não se apresentam de maneira
nenhuma sistematizadas, como o não estão as de Pessoa, 1 Extraído
do Verbete SIMBOLISMO, no DICIONÁRIO DE FERNANDO
PESSOA, Coordenado por Fernando Cabral Martins, 2010. pp. 803 a 807).
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prática deixou-se Pessoa entusiasmar bastante, já que ele o prefácio para uma Antologia de Poetas Sensacionistas,
lhe pareceu ser uma hipótese feliz de conciliação de irá afirmar «O sensacionismo começou com a amizade
contrários, ajudando-o a construir uma corrente literária entre Pessoa e Sá-Carneiro. Provavelmente é difícil
que era, simultaneamente, nacionalista e cosmopolita, destrinçar a parte de cada um na origem do movimento e,
neo-simbolista e acolhedora dos ismos de vanguarda. com certeza, absolutamente inútil determiná-lo. O facto
Tendo como princípio fundamental, sentir tudo de todas é que ambos lhe deram início (PIAl 99). Tentou
as maneiras e ser tudo e ser todos, o Sensacionismo foi encontrar-lhe possíveis datas de nascimento:
para Pessoa a arte da soma-síntese, como lhe chamou nomeadamente, a de 1914, considerando as suas obras
um todo no qual as partes, mesmo as mais dísparas se publicadas, se bem que o faz remontar a 1912,
harmonizavam, como se de um atanor alquimico se provavelmente, por ser a data em que inicia a sua
tratasse. correspondência e a sua grande amizade com
Deste modo, o Sensacionismo concedia uma Sá-Carneiro. Criou-lhe um órgão – Orpheu –, a revista
abertura a Pessoa que os outros ismos não lhe tinham porta-voz do nosso modernismo e do Sensacionismo,
permitido. Nas inúmeras páginas teóricas que nos deixou muito em particular. Sentiu o seu movimento ganhar
sobre esta corrente, disse Pessoa que o Sensacionismo outros adeptos no seio do grupo de Orpheu, para além da
admitia todas as outras correntes, assim como a literatura sua alma gémea, Sá-Carneiro, e dos seus próprios
englobava todas as artes apresentando se, assim híbrido e heterónimos. Tentou projectar além-fronteiras o
interdisciplinar, quanto à sua natureza. Através do Sensacionismo, como podemos constatar pelas várias
Sensacionismo, entendido como uma arte-todas-as-artes cartas escritas a editores ingleses, pedindo-lhes que
que tinha por regra-base ser a síntese de tudo Pessoa deu divulguem este movimento através da publicação da
continuidade ao seu sonho de um projecto interartes, já revista Orpheu (cf.C I).
iniciado, pouco tempo a antes, no momento em que Vibrou-o de modo mais efusivo e quase
acreditou e teorizou o Interseccionismo. Herdeiro do espasmódico, através do Álvaro de Campos, sobre tudo
Paulismo e do Interseccionismo, pelas primeiras do Campos-poeta futurista que assina as odes Triunfal e
interpenetrações de planos, nomeadamente, entre Marítima e que grita esse vórtice das sensações, essa
objecto/sensação paisagem/estado de alma, aproveitando harmonia alquímica dos contrários, onde o homem e a
do Cubismo a experiência da decomposição da sensação máquina, Deus e o Diabo, concreto e abstracto, aqui e
em cubos e outros poliedros e roubando ao futurismo o além, presente e passado, são um só e mesmo modo de
todo o movimento vorticista do sentir toda a liberdade sentir a sensação em absoluto. Viveu-o não menos
fónica e onírica da sensação, o Sensacionismo constitui- intensamente, mas de modo muito mais tranquilo,
se como uma corrente literária, exclusivamente através de Alberto Caeiro, o sensacionista puro e
portuguesa (apesar de certos ecos em Berlim e Zurique absoluto, como foi chamado, o mestre, afinal, no seu
dos primeiros anos do Século XX, como João Barrento ensinamento quanto a não pensar, a sentir apenas as
mostrou), de uma enorme riqueza e complexidade. De coisas tais como elas são, a saber olhá-las na plenitude da
alma absolutamente europeia, cosmopolita, o sua pureza. Não quis deixar de disciplinar as suas
Sensacionismo pretendia ser também uma reacção ao sensações, logo também o seu Sensacionismo, agora pela
nacionalismo excessivo da Renascença Portuguesa e dar voz mais dominada e contida de Ricardo Reis, o poeta de
uma continuidade mais renovada ao paulismo, formação clássica que ao demonstrar um excelente
demasiadamente simbolista para poder acompanhar, por domínio sob as suas sensações, foi também um pilar
si só, o ritmo da Vanguarda europeia. Propunha-se, assim fundamental deste movimento. Deste modo,
ser, à semelhança Orpheu, a ponte entre Portugal e a pressentimos o quanto o Sensacionismo terá ajudado
Europa. Pessoa a arrumar a casa das suas sensações, podendo
Entusiasmado, no início da sua criação, com esta distribuí-las por divisões do eu distintas, consoante os
nova corrente literária, logo Pessoa lhe procurou um desejos e a natureza de cada uma delas. Pressentimos
precursor: Cesário Verde; elegeu-lhe o chefe: Alberto também a complexidade sob a qual assenta esta corrente
Caeiro; separou todo o neoclassicismo que essa atitude literária, talvez excessivamente híbrida, talvez
continha assim como toda a vanguarda, e distribuiu-os, demasiadamente abrangente mas, certamente, cómoda
respectivamente, por Ricardo Reis e Álvaro de Campos. para a experiência heteronímica de Pessoa, para a
E, a ele próprio, o ortônimo, reservou-lhe o papel do diversidade dos seus modos de ser/sentir, para
teórico, do metteur en scène de todo este drama, acompanhar, de modo coerente, a histeria de ismos que
representado em actos e por personagens diferentes. brotavam pela Europa, para tentar, enfim, o equilíbrio de
Entusiasmou o seu amigo Sá-Carneiro a empreender este uma balança que ora pendia mais para a tradição
projecto, uma vez mais, conjuntamente, de tal modo que, nacionalista ora mais para a vanguarda europeia.
na voz de Álvaro de Campos, texto que se destinava a ser Rapidamente Pessoa também compreendeu a relação

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feliz entre o Sensacionismo e a heteronímia: uma nomeadamente A Chuva Oblíqua e Eu-Próprio O Outro,
corrente literária multímoda que albergava no seu amplo revelam recursos estilísticos (e não só) já mais
alpendre os estilhaços vários do eu, podendo deste modo complexos. Os planos da matéria e do espírito, da
fazer corresponder um poliísmo a uma políperso- paisagem e do estado de alma, perpassam numa, por
nalidade. Assim pôde sentir, separadamente, como que assim dizer, diagonal difusa, e abrem crateras de sentido
com almas diversas, o seu drama em gente, não tendo de diversificadas, analogias em movimento que consentem
separar por ismos diferentes os seus heterónimos e outras versos como «E os navios passam por dentro dos troncos
personalidades literárias, mas pelo contrário, podendo das árvores», «Todo o teatro e um muro branco de
fazê-los convergir numa atitude única, a sensacionista música / Por onde um cão verde corre atrás de minha
que dentro de si simultaneamente aproximava e saudade / da minha infância, cavalo azul com um jockey
diferenciava os seus diferentes modos de sentir. amarelo... (Chuva Oblíqua). No caso do conto de Sá-
Acreditou, por momentos, que estaria assim a salvo a sua Carneiro, a questão complexifica-se ainda mais, já que
unidade, se bem que desdobrada numa imensa este interseccionismo entre vários planos, se situa ao
diversidade fragmentada. nível do drama da sua alteridade fracassada,
Nos momentos de maior entusiasmo por este nomeadamente, do confronto passional entre um eu e um
projecto sensacionista, Pessoa dividiu-o em três outro, onde a riqueza de sentir ganha extraordinários
dimensões: à primeira, fez conesponder o Paulismo; à contornos ontológicos.
segunda, o Interseccionismo e à terceira chamou-lhe o Finalmente, numa terceira dimensão do
Sensacionismo integral ou Fusionista. Neste mesmo Sensacionismo, a tal designada por integral ou fusionista,
esquema das três dimensões do Sensacionismo Pessoa os dois exemplos apresentados por Pessoa O Marinheiro
exemplificou cada uma destas dimensões: à primeira, e A confissão de Lúcio, revelam o limite da complexidade
associou o seu poema Hora Absurda e o longo poema de da sensação, num estádio pré-heteronímico. Se bem que
Almada Negreiros, A cena do Ódio; o Sensacionismo a se trate de dois textos, sobretudo estilisticamente , muito
duas dimensões (interseccionista) exemplificou com o próximos do registo paúlico, até pelas datas em que
seu poema Chuva Oblíqua e um dos contos de Sá- foram escritos (os dois entre Setembro e Novembro de
Carneiro (de Céu em Fogo), Eu-Próprio o Outro; e 1913), Pessoa apresenta-os neste esquema como
finalmente à terceira, apresenta dois textos como exemplos do mais elevado grau do Sensacionismo. De
exemplo, o seu drama estático O Marinheiro e a narrativa facto, a complexidade de sentir colocada na voz das três
de Sá-Carneiro, A Confissão de Lúcio. Esta tentativa de veladoras de O Marinheiro, assim como, os diferentes
arrumação do Sensacionismo por dimensões diversi- níveis de intersecção turbulenta entre a realidade e o
ficadas, correspondentes aos seus ismos anteriormente sonho, permitem olhar este drama estático como um
criados, revela bem a necessidade sentida por Pessoa de fusionismo, em que as três veladoras não são ainda
organizar internamente a sua nova corrente literária, autónomas, mas apenas «vozes à procura de um corpo»,
dividindo-a quanto quer a uma maior complexidade da na expressão feliz de Teresa Rio Lopes (1968), ou seja,
sensação quer quanto a um maior ou menor dinamismo representam a fusão da diversidade de diferentes modos
ou estaticidade dessa mesma complexidade de sentir. de sentir, do poeta dramático que as pôs em cena. O
Deste modo, estas três dimensões do Sensacionismo mesmo poderíamos dizer de A Confissão de Lúcio,
corresponderiam a uma crescente complexificação de narrativa fantástica da efabulação de um eu que se
ismos, de textos, de modos de sentir. Num primeiro nível, desdobra também em três personagens – Lúcio, Ricardo
estaria então o Paulismo, onde a intersecção entre planos e Marta –, procurando igualmente as diferentes vozes da
se estabelece na superfície de imagens que se sucedem, dispersão desse eu, na distância construída dos outros de
tentando objectivar, tanto quanto possível, a sensação, si mesmo.
tornando-a esteticamente visualizável. Versos como «O Estes dois textos representariam, assim, segundo o
teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas» ou esquema de Pessoa sobre as várias dimensões do
«Minha alma é unia caverna enchida p’la maré cheia», de Sensacionismo, o limite máximo da dificuldade de sentir
Hora Absurda (1913) ou ainda, «Sou Narciso do Meu as coisas de modo plano ou unívoco, abrindo janelas
ódio! / O Meu Ódio é Lanterna de Diógenes» de A Cena possíveis para a necessidade de autonomizar cada uma
do Ódio (1915), revelam bem uma atitude sensacionista das diferentes sensações, vozes interiores, drama de
onde Pessoa reconhece o seu desejo de materializaç˜åo almas que, no caso da poética pessoana, irá ter uma
do espírito, em sucessivas metáforas que desenvolve, continuidade feliz na criação dos diferentes heterónimos.
tentando simplificar a sensação. Em Sá-Carneiro, estas diferentes vozes dramáticas nunca
Na segunda dimensão do Sensacionismno o processo se conseguirão despegar completamente umas das outras,
já se Complexifica um pouco mais. Em plena fase mantendo-se sempre numa tensão permanente, numa não
interseccionista textos como os exemplos apresentados, menos feliz criação contínua de personagens-máscaras

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de si mesmo. Eis a diferença entre o dramaturgo e o atitude sensacionista, quer os textos mais neo-simbolistas
actor: o que sabe criar a distância entre si e os outros (de do ortónimo, tais como O Marinheiro, quer os mais
si mesmo) e o que usa o seu próprio corpo para os vanguardistas de Alvaro de Campos. quer ainda os mais
representar a todos em cena. bucólicos de Caeiro ou os mais classicizantes de Ricardo
Deste modo, as duas poéticas. a de Pessoa e a de Sã- Reis. Toda esta imensa panóplia de cores de sensações
Carneiro, representam em absoluto, os princípios e a diferentes e aparentemente contraditórias era consentida
alma do Sensacionismo. tal como, aliás, ambos o por urna corrente literária que, afinal, não assentava
criaram: como uma corrente poliédrica, fragmentada na sobre base nenhuma:
sua unidade. que nada exclui mas que, pelo contrário, «O Sensacionismo difere de todas as atitudes
tudo consente desde que tenha por regra sentir tudo de literárias em ser aberto, e não restrito. Ao passo que todas
todas as maneiras e ser tudo e ser todos. Seria assim, o as escolas literárias partem de um certo número de
sensacionismo para Pessoa. enquanto teórico desta princípios, assentam sobre determinadas bases, o
corrente literária, um caos harmonioso uma espécie de Sensacionismo não assenta sobre base nenhuma. [...]
poética entendida e entendível como a coerência da Assim, ao passo que qualquer corrente literária tem, em
incoerência, que em si mesma conseguisse abarcar todas geral, por típico excluir as outras, o Sensacionismo tem
as tendências do início do século xx, todos os diferentes por típico admitir as outras todas. Assim, é inimigo de
estilhaços de personalidades (as suas e as dos outros) em todas, por isso que todas são limitadas. O Sensacionismo
permanente rotação de lugares de sentido diversificados. a todas aceita, com a condição de não aceitar nenhuma
Decorrente de tudo o que foi dito até aqui, esperar- separadamente» (PIAI 159). Do mesmo modo, para Sá-
se-ia que o Sensacionismo não tivesse tido urna Carneiro o Sensacionismo foi, mais do que uma corrente
existência tão efémera como os outros ismos criados ou literária que ajudou a nascer e a alimentar, uma atitude
adaptados por Pessoa. No entanto, tal não aconteceu. confortável que assentava bem no corpo de uma poética
Sobretudo depois do suicídio de Sá-Carneiro, em 1916, que, também na sua complexidade e mescla de
mas também depois de atenuado o espírito das sensações, procurava um caminho para a utopia de um
vanguardas europeias neste início de século, depois de ismo derradeiro que a todas pudesse aceitar com
proibida a publicação da revista que prometia dar serenidade. Assim, debaixo deste amplo alpendre do
continuidade a Orpheu, Portugal Futurista, em 1917, Sensacionismo, poderia reunir textos tão diferentes como
Pessoa desinteressou-se de dar continuidade à teorização os poemas que publicou em Orpheu I, sob o título de
e divulgação do Sensacionismo. No entanto, ele ficaria, «Para os “Indícios de Oiro”», alguns dos seus contos de
para sempre, gravado na memória de muitos dos seus Céu em Fogo ou ainda a narrativa A Confissão de Lúcio.
versos, nomeadamente, em alguns mais prograrnáticos O mesmo seria dizer que, debaixo deste alpendre, Sá-
do mestre Caeiro, tais como, «Eu não tenho filosofia: Carneiro poderia conviver com a sua alma e estilo
tenho sentidos» ou «Os meus pensamentos são todos romântico-interseccionista, ou mesmo romântico-
sensações», ambos do Guardador de Rebanhos sensacionista, modo como define e explica a Pessoa
(respectivamente, poemas II e IX). Ficaria, sobretudo, algumas das personagens principais do seu projecto
incorporado na génese e desenvolvimento do seu Novela Romântica, em duas cartas escritas em Paris,
processo heteronímico, como regra base que ensina que datadas de 3 e 5-2-1916, coincidentes com o momento do
toda a verdade é, afinal, em si mesma, contraditória. entusiasmo máximo pelo Sensacionismo partilhado pelos
Ficaria ainda como o palimpsesto da voz de Caeiro e de dois poetas. A 29 desse mesmo mês de Fevereiro, Sá-
versos como «A Natureza é partes sem um todo» (poema Carneiro ainda demonstra bem o seu entusiasmo quanto
XLVII de O Guardador de Rebanhos). ao projecto, certamente apresentado por Pessoa na carta
Efectivamente, o Sensacionismo foi um ismo muito anterior,, da realização de uma Antologia Sensacionista.
importante para Pessoa e para Sã-Carneiro. por tudo E, poucos dias antes de se suicidar, em carta datada de
aquilo que ele representou do sonho partilhado por 31-3-1916, Sá-Cameiro ainda apela a Pessoa que lhe
ambos os poetas de Orpheu, de uma arte que deveria ser continue a falar do Sensacionismo...
absolutamente moderna (diria Rimbaud) por conciliar, Ao lermos estas cartas de Sá-Carneiro ( e, ao mesmo
em si mesma, toda a tradição da herança nacionalista, tempo, tentando imaginar e reconstruir as de Pessoa)
ainda muito enraizada na nossa literatura da época, e sentimos o quanto o Sensacionismo era intensamente
todo o apelo de um cosmopolitismo, sangue novo, que descoberto e vivido por estes dois amigos, neste início de
fluía por toda a Europa. A abertura de uma corrente 1916; prevemos, de imediato, a dor sentida por Pessoa
literária que admitia todas as outras funcionava como após a perda do seu compagnon de route.
uma espécie de perfeita poligamia literária que. pelo seu Compreendemos. igualmente, a natural recusa de Pessoa
espírito libertador e pagào, não condenava as aparentes em continuar, sozinho, um sonho que tinha sido vivido a
infidelidades cometidas. Assim, caberia dentro desta dois. E entendemos também melhor o poeta de Dispersão,

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afinal o mais dramaticamente sensacionista de todos, que 10. O MARINHEIRO


quis ser tudo e ser todos, sentir tudo de todas as maneiras
e viver tudo aquilo que as suas personagens suicidas Este é o único drama acabado de Pessoa. Foi escrito
viveram e sentiram: «Mas você compreende que vivo uma em poucas horas, na viragem de 11 para 12 de Setembro
das minhas personagens – eu próprio, minha personagem de 1913, e publicado pela primeira vez dois anos depois
– com uma das minhas personagens» (CSC 284). dessa data, após profunda revisão, na Orpheu 1 (Lisboa,
Quanto aos outros poetas de Orpheu que também 1915). A recusa de Álvaro Pinto em publicar a peça em A
aderiram ao Sensacionismo. ou que igualmente se podem Águia, órgão central do movimento da «Renascença
incluir numa espécie de bibliografia sensacionista (aliás, Portuguesa», serviu de pretexto para Pessoa romper com
esboçada por Pessoa). foram considerados e elogiados o Saudosismo.
pelo poeta dos heterónimos, como. por exemplo. Almada Segundo Robert Bréchon, «Os Cegos, de
Negreiros e o texto A Cena do Ódio, ou criticados em Maeterlinck (1890), forneceu-lhe o modelo formal da
alguns aspectos. como Pedro de Menezes (pseudónimo ação dramática», e À espera de Godot (1953) parece uma
de Alfredo Pedro Guisado) e João Cabral do Nascimento, «réplica metafisica» da peça. (BRÉCHON, 1996: 190).
num texto intitulado, precisamente, «Movimento Mas a alcunha de «drama simbolista» reduz em muito a
Sensacionista» e publicado, pela primeira vez, na revista importância do texto. Para Bréchon, O Marinheiro é um
Exílio (1916). Percebemos, através de textos como este, dos momentos-chave de toda a obra de Pessoa: «É obra
a dimensão nacional que Pessoa quis dar ao movimento profunda, que, quando Pessoa a escreve, quase às
sensacionista e o modo como ele ia colhendo novos vésperas do “dia triunfal”, lhe marca importante etapa da
adeptos. Sabemos também que o quis projectar além- evolução: ela resume tudo o que lhe tinha inspirado o
fronteiras nacionais e que o divulgou junto de editores sentimento “paulista” da vida e anuncia o aparecimento
estrangeiros, nomeadamente ingleses, como Frank nele de “vozes” novas» (BRÉCHON 1996: 189).
Palmer (como, aliás, já o tinha feito, para o Em carta a Armando Côrtes-Rodrigues (4-3-1915),
Interseccionismo). Relacionou o Sensacionismo com o Pessoa escreve a respeito de seu texto: «O meu drama
Neopaganismo defendido por Caeiro, Reis e Mora, estático O Marinheiro está bastante alterado e
baseando os dois na mesma procura da unidade através aperfeiçoado; a forma que v. conhece é apenas a primeira
da pluralidade de deuses e de ismos. Transcendeu-o, para e rudimentar, O fmal, especial mente, está muito melhor.
além das suas fronteiras artísticas, literárias e religiosas, Não ficou, talvez, uma cousa grande, como eu entendo
numa dimensão ocultista já que, afinal, rapidamente se as coisas grandes; mas não é cousa de que me
apercebeu que a estrutura alquímica do Sensacionismo, envergonhe, nem – creio – me venha a envergonhar»
segundo a qual era permitido abolir todos os contrários, (C I 157).
era a mesma estrutura esotérica da sua obra, as mesmas Pessoa, de facto, nutria especial apreço pela peça. A
bodas alquímicas em que o sim e o não se fundem numa sua leitura permite fácil identificação de alguns dos
perfeita harmonia. E. como diria urna das suas temas mais caros à sua poesia: as dúvidas existenciais; a
personagens, o Professor Serzedas, que assina um dos intuição de que a vida é sonho; o desdobramento da voz;
contos filosóficos, O Vencedor do Tempo, chegado a este a clivagem do eu num espaço aberto entre aquele que
ponto culminante do seu raciocínio, e dada a apetência sente e ‘o que pensa, ou entre aquele que pensa e que diz;
profundamente esotérica do pensamento pessoano, uma a colocação em xeque da unidade do eu; o fado da
outra dimensão sobrenatural, ou mágica, para além das autoconsciência; o adiamento pelo sono.
três literárias já referidas e da religiosa do O crítico José Augusto Seabra traduz um importante
Neopaganismo. rapidamente se impunha para este trecho escrito em inglês por Pessoa (que a edição da
sensacionismo: assim concebeu uma quarta dimensão, a Nova Aguilar reproduz no original), em que sugere o
mais perfeita de todas porque não dependente da carácter trágico da peça, e o juízo especialmente positivo
materialidade do espaço ou do texto, mas liberta nas asas de seu autor sobre o desenlace: «Começando de uma
do tempo e do sonho. Enfim, a sensação absoluta. forma muito simples, o drama evolui gradualmente para
BIBL.: BARRENTO, João, O Espinho de Sócrates. um cume terrível de terror e de dúvida, até que estes
Expressionismo e Modernismo. Lisboa. Editorial Presença. absorvem em si as três almas que falam e a atmosfera da
1987; COSTA. Paula Cristina (Igreja), As Dimensões Artísticas e sala e a verdadeira potência do dia que está para nascer.
Literárias do Projecto Sensacionista. Dissertação de O fim da peça contém o mais subtil terror intelectual
Mestrado. FCSH da Universidade Nova de Lisboa, 1990. jamais visto. Uma cortina de chumbo tomba quando elas
não têm mais nada a dizer umas às outras nem mais
Paula Cristina Costa.2 nenhuma razão para falar» (apud SEABRA 1974: 31).
2 Extraído do Verbete SENSACIONALISMO, no DICIONÁRIO DE A peça, nunca representada em vida do escritor,
FERNANDO PESSOA, Coordenado por Fernando Cabral Martins, 2010. pp. embora escrita em prosa, apresenta tom
786 a 791).
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predominantemente poético, permeado de pausas e sua pátria, ele sonha ter vivido numa outra pátria, que
reticências, bem ao gosto «paulista». Na Orpheu, O constrói, dia a dia, pela imaginação. Aos poucos, pode ver
Marinheiro carrega o subtítulo «drama estático». A as paisagens, as ruas, as cidades, pode percorrê-las,
expressão designa bem sua natureza distinta, reconhecer as pessoas que ali viveram, seu passado e suas
aparentemente escrita mais para ser lida do que assistida: conversas, o lugar onde nasceu, onde passou as diferentes
um teatro sem acção, com personagens imóveis, não fases da vida, e o companheiros que teve. Mas eis que,
caracterizadas, que apenas falam num cenário solto no num dia de muita chuva, cansa-se de sonhar, quer
espaço e situado num tempo indefinido. Num lembrar-se da pátria verdadeira, da meninice que teve, e
manuscrito, provavelmente de 1914, Pessoa tece então isso parece-lhe impossível, nada lhe vem. Não pode
considerações a respeito do que vem a ser essa sua nem ao menos supor ter vivido uma outra vida, porque a
concepção de teatro: «Chamo teatro estático àquele cujo única que teve passara a ser realmente a vida que sonhara.
enredo dramático não constitui acção – isto é, onde as O dia começa a raiar e tanto a ilha do marinheiro
figuras não só não agem, porque nem se deslocam nem quanto o quarto com as veladoras parecem-lhes
dialogam sobre deslocarem-se, mas nem sequer têm igualmente irreais. Não será tudo sonho? «SEGUNDA –
sentidos capazes de produzir uma acção; onde não há Talvez nada disto seja verdade... Todo este silêncio e esta
conflito nem perfeito enredo. Dir-se-á que isto não é morta, e este dia que começa não são talvez senão um
teatro. Creio que o é porque creio que o teatro tende a sonho... Olhai bem para tudo isto... Parece-vos que
teatro meramente lírico e que o enredo do teatro é, não a pertence à vida?...»
ação nem a progressão e consequência da acção – mas, E então o caráter ficcional do sonho narrado inverte-
mais abrangentemente, a revelação das almas através das se. E o pavor criado pela hipótese de não existirem, de
palavras trocadas e a criação de situações [...] Pode haver tudo não passar de poeira dos sonhos, abate-se sobre as
revelação de almas sem acção, e pode haver criação de veladoras: «SEGUNDA – Porque não será a única coisa
situações de inércia, momentos de alma sem janelas ou real nisto tudo o marinheiro, e nós e tudo isto aqui apenas
portas para a realidade» (PETCL 112). um sonho dele?»
O drama passa-se numa madrugada. O leitor entra em Na medida em que o que garante a permanência das
contato com três veladoras, que não são nomeadas ou veladoras no mundo é a fala, estranhar a própria voz
descritas. Elas apenas dialogam até ao amanhecer, no significa questionar a existência. Esse questionamento
quarto de um castelo antigo, vazado por uma janela estreita ganha consistência no drama com horror crescente, como
e voltada para o mar. No centro do quarto, no alto de uma se houvesse uma mão oculta, uma «quinta pessoa»,
mesa, há um caixão com uma donzela de branco. Não guiando suas falas: «Que voz é essa com que falais?...
sabemos quando a cena se passa, tão-pouco em que lugar «Entre mim e a minha voz abriu-se um abismo»: «Agora
se situa esse «castelo antigo». Há apenas as falas das estranho-me viva com mais horror: «E parecia-me que
veladoras, que, a certa altura, ao invés de demarcar espaços vós, e a vossa voz, e o sentido do que dizíeis eram três
de enunciação distintos, ou identificar personagens, tendem entes diferentes, como três criaturas que falam e andam»;
a confundir-se umas com as outras. Segundo Robert «Quem é que nos faz continuar falando?»; «Que estranha
Bréchon, a sensação que temos ao ler uma peça como essa, que me sinto!... Parece-me já não ter a minha voz... parte
em que tempo e espaço são suspensos, e apenas vozes se de mim adormeceu e ficou a ver...»; «Dói-me o intervalo
apresentam, é a de estar mos dentro de um cérebro. De que há entre o que pensais e o que dizeis... A minha
facto, os diálogos, em tom monocórdico, assemelham-se consciência bóia à tona da sonolência apavorada dos meus
mais a um monólogo, como se houvesse a fala de uma sentidos pela minha pele , «Oh, que horror, que horror
única personagem numa conversa consigo mesma. íntimo nos desata a voz da alma, e as sensações dos
No Marinheiro, as veladoras dizem não poder capturar pensamentos, e nos faz falar e sentir e pensar quando tudo
o presente – em constante transição – o passado – que não em nós pede o silêncio e o dia e a inconsciência da vida...»
é mais que um sonho – e o futuro – que sumirá ao raiar do É com esse arrepio da consciência que tocamos o
dia. Essa imaterialidade aparentemente absurda só não ceme da peça – e porventura da obra dePessoa –, assim
resulta no nada absoluto porque há a voz, único substracto identificado por José Augusto Seabra: «a desintegração
de existência, o corpo irredutível do drama (a palavra— as da linguagem numa pluralidade de linguagens (o
veladoras não são mais do que isso), que paira numa poemodrama), do sujeito numa pluralidade de sujeitos (o
atmosfera que não é exactamente onínca ou real, mas que poetodrama) (1974: 31).
se situa no não-espaço entre sonho e realidade. Pessoa traça aqui o processo de desprendimento do
Por ser a voz o modo de existência no drama, a eu de si mesmo, como uma consciência boiando sobre a
segunda veladora, que desempenha o papel de corifeu, de sensação, e das sensações sentindo, portanto, a sós,
narradora, conta seu sonho a respeito de um marinheiro apostasiadas, desvinculadas de uma mente, e de um
perdido numa ilha longínqua. Impossibilitado de voltar à corpo. Em retrospectiva, o desdobramento heteronímico

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parece prefigura do. Em O Marinheiro, esse das veladoras, do marinheiro, toma-se menos real do que
desdobramento traduz-se abertamente como reflexão aquilo que o marinheiro sonhou (do sonho dentro do
profunda a respeito do tema obsessivamente perseguido sonho). Assim, a pátria sonhada toma-se uma ficção mais
nas diferentes instâncias da obra: o mistério do ser. verdadeira do que a anterior. A vida é sonho, e este
Uma das leituras mais radicais deste drama (embora problema tão pessoano está, afinal, e segundo Tabucchi,
muito breve) será a realizada por Antonio Tabucchi, que já explícito no teatro de Shakespeare. Quando Pessoa
se afasta da habitual aproximação feita pela critica com declara «All my books are book of reference. I read
os dramas simbolistas, e entende O Marinheiro como Shakespeare only in relation to the “Shakespeare
uma charada shakespeariana que exibe o centro Problem”: the rest I know already» (PIAI 21), faz
dramático da escrita de Pessoa, isto é, o problema de se menção a um problema que é tanto seu quanto do autor
traduzir uma ficção por outra ficção – a vida, que não inglês – e, de resto, de toda a literatura: O Marinheiro é
passa de um sonho, pela literatura, o teatro. Tabucchi não uma primeira tentativa de traduzir, no plano do teatro (do
desenvolve essa leitura, mas se pode considerar que, texto), o teatro (o texto) da vida. Um pouco mais tarde
nesse sentido, estaremos diante de um texto de alcance ela sena sucedida pelo sistema heteronímico.
metalingüístico, no qual, possivelmente, a «quinta
pessoa» pressentida na sala é o próprio autor, que conduz BIBL: MARINHO, Maria de Fátima, «O Marinheiro e o
as personagens, que dita suas vozes. A aproximação do “Teatro do Absurdo”», in Actas do 1 Congresso Internacional
drama a Seis Personagens à procura de Um Autor, de de Estudos Pessoanos, Porto, Centro de Estudos Pessoanos,
Pirandello, é profícua a essa leitura. O marinheiro, que é 1979; SEABRA, José Augusto, «O Drama Estático», in Fernan
«sonho de um sonho» – que é fruto da imaginação da do Pessoa ou o Poetodrama, Sáo Paulo, Perspectiva, 1974;
segunda veladora, que, por sua vez, é fruto da TABUCCHI, Antonio, «O Marinheiro: Uma Charada Esotérica?»,
imaginação do poeta –, quando começa a sonhar, produz in Pessoana Mínima, Lisboa, IN-CM, 1984.
nova realidade, seu próprio passado, isto é, o marinheiro,
de sonhado toma-se sonhador, de personagem migra para Caio Gagliardi3
o lado do autor. O marinheiro é agora quem narra. Feito
isso, Pessoa inverte as coisas: a aparência ilusória de
verdade, a «verdade fingida» que se encontra no plano 3 Extraído
do Verbete O MARINHEIRO, no DICIONÁRIO DE FERNANDO
PESSOA, Coordenado por Fernando Cabral Martins, 2010. pp. 439 a 441).

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Exercícios Propostos
Texto para a questão 1. Resolução: Assim como as sereias hipnotizam seus
PRIMEIRA — Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo ouvintes por meio do canto, a Segunda Veladora fixará a
Dezembros na alma... Estou procurando não olhar para a atenção das demais por meio de seu relato, a ponto de
janela... Sei que de lá se veem, ao longe, montes... Eu fui chegarem a não saber mais quem são e se realmente
feliz para além de montes, outrora... Eu era pequenina. existem.
Colhia flores todo o dia e antes de adormecer pedia que
não mas tirassem... Não sei o que isto tem de irreparável b) Explique o paradoxo presente no fragmento.
que me dá vontade de chorar... Foi longe daqui que isto
pôde ser... Quando virá o dia?... Resolução: Segundo a Veladora, ela, quando não pensava
em nada, estava pensando no seu passado. Se ela pensa
1. No fragmento anterior, extraído da peça O Marinheiro de no passado, é contraditória a afirmação de que em nada
Fernando Pessoa, a omissão do artigo o, que antecede a estaria pensando. Mas, o paradoxo se desfaz ao
palavra dia, alteraria o sentido original da fala da Primeira considerarmos que a vida anterior da Veladora era vazia,
Veladora? Explique. portando, pensar em nada significaria pensar no vazio que
fora sua existência.
Resolução: Sim, pois, sem o artigo teríamos a informação
de que a Veladora colheria flores todos os dias da semana. Texto para a questão 4.
Na passagem, a Veladora informa que colhe flores o dia SEGUNDA — Vou dizer-vo-lo. Não é inteiramente falso,
inteiro. porque sem dúvida nada é inteiramente falso. Deve ter
sido assim... Um dia que eu dei por mim recostada no
2. Numa das falas da SEGUNDA Veladora, ela diz: — cimo frio de um rochedo, e que eu tinha esquecido que
Contemos contos umas às outras... Eu não sei contos tinha pai e mãe e que houvera em mim infância e outros
nenhuns, mas isso não faz mal... Só viver é que faz mal... dias — nesse dia vi ao longe, como uma coisa que eu só
De que modo a negação na passagem torna-se uma pensasse em ver, a passagem vaga de uma vela. Depois
contradição ao longo da peça O Marinheiro? ela cessou... Quando reparei para mim, vi que já tinha
esse meu sonho... Não sei onde ele teve princípio... E
Resolução: Embora a Segunda Veladora declare que não nunca tornei a ver outra vela... Nenhuma das velas dos
sabe conto algum, é ela quem relata o sonho do navios que saem aqui de um porto se parece com aquela,
Marinheiro. Portanto, a personagem acaba se mesmo quando é lua e os navios passam longe devagar...
contradizendo, pois ela sabe contar histórias.
4. Comparando a fala da Segunda Veladora com a história do
Texto para a questão 3. Marinheiro por ela relatada, pode-se perceber alguma
SEGUNDA — Para quê?... Fito-vos a ambas e não vos semelhança quanto ao que ambos teriam vivido? Explique.
vejo logo... Parece-me que entre nós se aumentaram
abismos... Tenho que cansar a ideia de que vos posso ver Resolução: o Marinheiro, quando naufraga na ilha,
para poder chegar a ver-vos... Este ar quente é frio por começa a imaginar uma nova realidade, composta por
dentro, naquela parte que toca na alma... Eu devia agora lugares, situações e pessoas inéditos. De tanto pensar
sentir mãos impossíveis passarem-me pelos cabelos — é o neles, há um momento em que ele se esquece
gesto com que falam das sereias... (Cruza as mãos sobre completamente de sua vida anterior e passa a acreditar que
os joelhos. Pausa). Ainda há pouco, quando eu não aquilo com que sonhara era a única realidade, pois já não
pensava em nada, estava pensando no meu passado. se lembrava mais de nada vivido antes do naufrágio.
Assim como o Marinheiro perde a lembrança de sua vida
3. Segundo a mitologia, as sereias são seres metade mulher e anterior ao acidente, a Segunda Veladora afirma também
metade peixe, ou pássaro, segundo alguns escritores que tinha esquecido que tinha pai e mãe e que houvera em
antigos, que atraem e encantam quem as ouve cantar. mim infância e outros dias.

a) Qual seria a relação da figura da sereia com a narrativa que


a Segunda Veladora relata às demais mulheres?

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11. BIBLIOGRAFIA

BRÉCHON, Robert. ESTRANHO ESTRANGEIRO: uma biografia de Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Record, 1998.

MARTINS, Fernando Cabral. DICIONÁRIO DE FERNANDO PESSOA E DO MODERNISMO PORTUGUÊS. São


Paulo: Leya, 2010.

PESSOA, Fernando. OBRAS EM PROSA. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005.

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